terça-feira, 8 de abril de 2008

"Eu tenho um sonho"

Há 40 anos, morria o pastor e ativista negro Martin Luther King, assassinado num hotel de Memphis, no Tennessee (EUA), região sulista onde a segregação racial era mais acirrada. No período decorrido desde então, os Estados Unidos mudaram muito, para melhor e para pior. Na política externa, tornaram-se hegemônicos após o colapso da União Soviética. Perderam a Guerra do Vietnã, mas não pararam de guerrear em todas as partes do mundo e hoje estão metidos num beco sem saída no Iraque e no Afeganistão. Mas internamente temos a aplaudir uma maior prosperidade econômica, só abalada agora pela bolha do crédito habitacional, e uma muito mais ampla integração racial, inimaginável nos tempos de King.

King nasceu em Atlanta, capital da Georgia, a 15 de janeiro de 1929, numa família negra de classe média. Seu pai era pastor batista e sua mãe, professora. Aos 19 anos, tornou-se também pastor da Igreja Batista e mais tarde se graduou em teologia, tendo feito pós-graduação na Universidade de Boston. Logo dedicou-se à resistência não violenta pelos direitos civis dos afro-americanos, sobretudo contra as práticas de discriminação racial antiafro, mais arraigadas nos Estados do Sul, vencidos na Guerra de Secessão. Como aconteceu no Brasil, mesmo após a libertação dos escravos, os negros ali permaneceram afastados das oportunidades de enriquecimento e de ascensão social.
Principalmente no Sul, levavam uma vida de permanentes humilhações, não podendo morar em bairros de brancos nem freqüentar as mesmas escolas que eles, entre outras normas e práticas discriminatórias. Os assassinatos de afrodescendentes eram freqüentes e eles não tinham condições de ser amparados pela Justiça dominada por brancos segregacionistas e fanáticos. Havia até uma sociedade secreta chamada Ku Klux Klan, que justiçava, ou simplesmente dizimava os negros, à margem da Justiça. Muito bem registrada no filme 'Mississippi em chamas'. Tudo isso olhado com naturalidade pelos poderes públicos e pela sociedade branca.
Por suas posições e atitudes anti-discriminação, na linha do indiano Mahatma Gandhi, King passou a ser considerado um líder e um herói nas comunidades negras. Em 1955, quando era pastor em Montgomery, capital do Alabama, iniciou sua luta apoiando ativamente um protesto que durou um ano contra a segregação dos negros no transporte público da cidade. Ele organizou e deu consistência ao movimento obrigando a autoridade municipal a dar por finda a separação obrigatória entre brancos e afros nos transportes. Foi assim que King iniciou sua trajetória de defensor dos direitos civis dos americanos de sua etnia, até então tratados como cidadãos não plenos, pelo que foi preso diversas vezes. Criou uma organização de igrejas e pastores negros cujo objetivo era pôr fim às leis segregacionistas.
No início dos anos 60, passou a liderar protestos em diversas cidades do país e promover manifestações contra a segregação racial em hotéis, restaurantes e outros lugares públicos. Foi a época da Marcha sobre Washington em 63, ano da morte do presidente Kennedy, simpático ao movimento. No ano seguinte, King foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz. Mais tarde, aderiu ao movimento de protesto contra a Guerra do Vietnã. Ficou famoso o seu discurso conhecido como I have a dream (Eu tenho um sonho), proferido na Marcha sobre Washington. Dizia que, 100 anos depois da emancipação dos escravos, o negro ainda não era livre.
E continuava: “100 anos depois, a vida do negro ainda é tristemente inútil pelas algemas da segregação e as cadeias da discriminação. Cem anos depois, o negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. [...]Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas da democracia. [...]Eu digo a vocês hoje, meus amigos, [...]que eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença: nós celebraremos estas verdades e será claro para todos que os homens são criados iguais. Passados 45 anos do I have a dream, um afro-americano é pré-candidato à presidência dos EUA, com grandes chances de chegar lá.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Olho Mágico

(Nani, antes de sofrer o acidente cerebral)
Sentado à sombra de uma árvore, Ernani passava os dias olhando um tronco cortado no quintal vizinho. Imaginava o que aquele pedaço de madeira foi um dia. Quem sabe, ali havia uma frondosa mangueira, onde as crianças labuzavam-se com seus frutos. Onde podiam sentar a sua sombra, numa tarde assustadoramente quente do verão pernambucano. Uma árvore de galhos grossos e fortes onde os meninos mais levados subiam para brincar ou se esconder por entre as folhas. Mas ali, não existia mais árvore alguma. Só restava um pedaço de madeira sem movimento, sem alimentos, sombra e esconderijos a oferecer. Mas, não sem vida. Como se estivesse lutando contra o mal que lhe fizeram, um frágil galho verde teimava em nascer. Sentado no quintal vizinho, sob outra mangueira, Ernani Alves de Araújo imaginava como aquela árvore foi um dia. E sentia-se como ela. Lutando para mostrar que nele também havia vida.
Nani, como gosta de ser chamado, trabalhou em agência de seguros, editora de livros, teveoficina de serigrafia, foi fotógrafo, corretor de imóveis e se realizou profissionalmente como mecânico de navios. Era namorador (como bem lembra a mãe dele), teve 2 filhos e adorava andar de moto, principalmente quando se tratava da sua Harley Davidson. Também enveredou pelo lado artístico e fez esculturas de metal. Peças decorativa, porta CDs, mesas, espelhos adornados com mosaicos de cerâmica. Da vida daquela mangueira antes da poda, Ernani nada sabe. Só imagina.
Mas, da dele, de quem era Nani antes daquele 28 de janeiro de 1999, ele lembra bem. De tudo. Até dos últimos minutos antes de sua vida, da forma como era, também ser podada."Eis como tudo aconteceu e do que me lembro: morava no bairro da Torre, no Recife, acordei de madrugada para ir ao banheiro e fiz careta para o espelho que eu mesmo decorei com mosaico, senti uma dor forte na cabeça e fui socorrido às pressas para um dos melhores hospitais da cidade. A partir daí, iniciou-se uma nova fase em minha vida". Há 9 anos, Nani sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), chamado popularmente de derrame. Ele tinha 37 anos. Ficou tetraplégico. Não consegue falar e o corpo não responde aos seus comandos. Só pode mexer os olhos e movimentar um pouco, e com dificuldade, alguns dedos da mão esquerda. Um dia, perdeu a visão do olho esquerdo por causa de uma úlcera. Restou o direito. Pouco, diriam alguns. Nada disso.
(Sua mãe, Maria Brazilian, 80 anos, nunca mais conseguiu se comunicar com ele após o AVC)
Dois mundos - O olho direito de Nani não cumpre apenas a função de enxergar. Ele é um canal direto, o elo vital de comunicação entre o seu mundo interior e o mundo externo. O homem de tatuagem de borboleta no braço e espírito alegre nunca perdeu a consciência e a capacidade intelectual que sempre teve. E não se resignou. Não quis levar uma vida vegetativa e, como aquele tronco de mangueira cortado, desejou interagir com aqueles a sua volta. Quis ser, novamente, o dono da sua própria vida. Nani desenvolveu um jeito próprio de comunicação. "Não sei como, mas me comunico através de gestos ou sinais que faço com o olho. É só saber a seqüência dasvogais e consoantes e pronto. Basta ter paciência e você já está apto a se comunicar comigo, bater altos papos e dar boas gargalhadas". A frase é de Ernani. E assim como outras citações presentes nesta reportagem, ela foi retirada do livro Olho Mágico, que ele "escreveu", de forma independente. O texto é todo em 1ª pessoa. Um relato autobiográfico da sua luta. A maior parte das 59 páginas da publicação foi ditada por ele, por meio do seu olho direito. Ele "soletrava" e outras pessoas transformavam aqueles sinais em letras escritas numa folha de papel. Demorou 7 anos para ficar pronto.
Em uma pequena parte do livro, ele também teve a ajuda de um computador. 4 anos depois do AVC, com muito esforço, ele conseguiu usar o pouco movimento dos dedos da mão esquerda para escrever sua primeira frase após o derrame: "Nani volta de novo". Mas, sua principal forma de comunicação é mesmo o olho. É através dele que Ernani demonstra seus sentimentos, suas alegrias. E até conta piada. A mãe de Nani, Maria Brazilian, de 80 anos, nunca conseguiu conversar com o filho depois do AVC. Mas até que não é tão difícil assim. Quando quer se comunicar, ele se mostra inquieto. Aí, é só perguntar: "consoante"? Se a palavra começar com consoante, Nani olha para cima em sinal positivo e o interlocutor vai tentando acertar qual a letra. Quando chega a correta, Nani olha de novo para cima. E assim vai. Letra por letra, construindo um diálogo. Conversando com as pessoas a sua volta, contando o que o angustia, o que o deixa alegre, o que gosta de fazer, de comer, quando quer passear. Letra por letra, Nani interfere no mundo a sua volta. Não fica apenas assistindo as coisas acontecerem. Cores - No seu quarto pintado de azul - ele cansou de ver tanto branco nos hospitais e mandou pintar as paredes e o teto- Nani ouve suas músicas preferidas. Djavan e Alceu Valença estão na lista. Ao lado da cama, um quadro-negro mostra frases que ele dita. "A doença mais contagiosa é o preconceito", é uma delas. "A humanidade só terá a mais sonhada paz quando for mais humana", é outra.
Nani conta com a ajuda de quatro auxiliares de enfermagem que se revezam a cada 12 horas, sem contar com a fonoaudióloga e a fisioterapeuta. Brinca com elas, faz piada e briga quando elas teimam em usar bata branca. Com pequenos gestos, tenta manter vivo seu espírito alegre de sempre. Sonho? "Tenho tantos sonhos que não dá para contar", disse. Nem um? "Eu também tenho segredos", brincou. Comida preferida? Galinha cabidela. O que gosta de ler? Pablo Neruda. Algo que detesta? Preconceito. Cinema - História parecida com a do pernambucano Ernani está sendo contada nos cinemas, no filme francês O escafandro e a borboleta. Trata-se da vida do editor da revista Elle, Jean-Dominique Bauby, que também sofreu um derrame cerebral e só conseguia mover o olho esquerdo. "Piscando as letras", ele também pôde se comunicar com o mundo. O filme ainda não teve seu lançamento comercial no Brasil, mas já conquistou fãs e ganhou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes 2007. O diretor Julian Schnabel ainda concorre ao prêmio de Melhor Diretor no Oscar. Do lado de lá da tela, glamour. Do lado de cá, dificuldades.
O livro que Ernani escreveu para contar a sua história não tem editora. Os primeiros exemplares, patrocinados pelo seu irmão, permanecem guardados em um armário. Poucos compartilham do seu exemplo de vida. Mas, Nani segue em frente. O homem que chegou a ser "desenganado" pelos médicos já começou a escrever o segundo livro. Desta vez, de poesias, registradas em uma caderneta. Ainda assim, como no filme, a borboleta (lembra que Ernani tem uma tatuada no braço?), talvez seja a melhor imagem para representá-lo. Um símbolo da metamorfose, da transformação, do renascimento."Nela (na antiga casa) tinha um lugar que eu gostava de ficar: era o quintal, onde havia uma mangueira antiga que dava boa sombra. (...) Foi lá que observei o quintal da vizinha: havia uma mangueira que havia sido cortada, e dela só restava um pedaço de tronco, enraizado no chão. Dele nascia um novo pé de mangueira, mostrando a todos que naquele pedaço de tronco havia vida. Aquela pequena mangueira me deu mais força e coragem para continuar minha recuperação. Assim como aquele tronco, eu tinha que mostrar a todo mundo que ainda havia vida em mim"

Trecho do livro Olho Mágico

Fonte: Diário de Pernambuco